UM ESPAÇO PARA O LIVRE PENSAR

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Quem são os curadores da Bienal do Livro 2024?

Neste ano, a Bienal Internacional do Livro de São Paulo realiza sua 27ª edição em setembro, entre os dias 06 e 15, no Distrito Anhembi – local de grandes eventos situado em Santana, na zona norte da cidade metropolitana, que já sediou anteriormente outras edições. O evento será realizado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pela empresa RX.

A última edição da Bienal ocorreu em julho de 2022, no espaço Expo Center Norte, e contou com mais de 660 mil visitantes, que puderam apreciar as 1.500 horas de programação e prestigiar os 330 autores nacionais e internacionais que lá expuseram suas obras.

Há uma semana, no dia 24, a imprensa responsável pelo evento divulgou os nove curadores designados para os espaços culturais que estarão presentes na edição deste ano: Leonardo Neto, Clivia Ramiro, Diana Passy, Lucinda Marques, Elisabete da Cruz, André Boccato, Solange Petrosino, Tiago Marchesano e Cassia Carrenho. 

Leonardo Neto e Clivia Ramiro, curadores do Salão de Ideias

O espaço Salão das Ideias propõe-se a trazer discussões e reflexões atuais dotadas de relevância social e cultural. A área, nesta edição, convida os participantes a conversas plurais e abrangentes e terá a liderança de dois curadores: Leonardo Neto, pela CBL, e Clivia Ramiro pelo Sesc SP, parceria do evento. Neto declara: “Estar no time de curadores, para mim, é um privilégio muito grande. Entre os principais desafios do Salão de Ideias está a busca por temas importantes da atualidade, mas que tenham uma certa perenidade. Temos a preocupação de que todas as vozes possam ser ouvidas, de todas as matizes, de todas as cores, de todos os pensamentos estejam reunidos no Espaço para fazer algo absolutamente plural!”

Diana Passy, curadora da Arena Cultural 

A Arena Cultural é espaço da Bienal reservado a bate-papos e palestras que proporcionam um contato direto dos visitantes com autores nacionais e internacionais convidados. Diana Passy, neste ano, será mais uma vez curadora desta área. Profissional do mercado editorial, especializada em literatura comercial e young adult (gênero ‘jovem adulto’), a curadora afirma que: “Minha parte favorita de fazer a programação da Arena Cultural é presenciar o momento em que o autor se conecta com seus leitores, e os leitores se conectam uns com os outros. A proposta da Arena Cultural é reflexo de todos os leitores que circulam pelos corredores da Bienal. Para este ano, pretendo aprofundar esse olhar ainda mais, e tentar trazer de volta à Bienal pessoas que perderam o hábito de visitá-la, ou que acreditam que o evento não é para elas”.

Lucinda Marques, curadora do Espaço Cordel e Repente 

Lucinda Marques foi curadora em edições anteriores da Bienal, já tendo uma relação longínqua com o evento; é a representante da Câmara Cearense do Livro (CCL) desta Bienal. Neste ano, está sob sua responsabilidade o Espaço Cordel e Repente, que contará com uma extensa programação que valoriza a literatura de cordel. Debates, apresentações, palestras e contação de histórias estão incluídos. A curadora declara: “Este será o quarto ano de curadoria. Teremos um espaço bastante dinâmico, com muita música, poesia, cordelistas, repentistas, autores, ilustradores, editoras diversas e de vários estados do Nordeste”

Elisabete da Cruz, curadora do Espaço Infâncias 

O antigo Espaço infantil, nesta 27ª edição, transforma-se em Espaço Infâncias. A área trará diversas atividades educativas aos pequenos leitores, incluindo contação de histórias, oficinas temáticas e atividades de pouca duração. A imprensa da Bienal garante, em declaração postada no site oficial, que haverá um repertório específico para os públicos de todas as faixas etárias, garantido abrangência inclusive a agendas familiares. 

Educadora, escritora e produtora executiva na área de projetos culturais, Elisabete é referência na área educacional e declara: “É uma responsabilidade e ao mesmo tempo uma honra poder fazer parte de um time de curadores de excelência, onde você tem pessoas das mais diversas modalidades dentro da literatura e cuidar da literatura para a infância é um privilégio. A mudança do nome foi uma condição muito importante para a gente colocar a infância no lugar certo dentro de uma Bienal”

André Boccato, curador do Espaço Cozinhando com Palavras

O paulistano André Boccato é o curador com mais tempo de casa e será novamente responsável pelo espaço Cozinhando com Palavras. Com sua carreira iniciada na arquitetura e no jornalismo, Boccato migrou para a gastronomia posteriormente. Certamente, o conhecimento nestas três áreas o transforma em um profissional multifacetado e, definitivamente, criativo.

Boccato afirma a imprensa da Bienal: “A Bienal do Livro é uma grande festa da cultura, do congraçamento, de alegria e, como sabemos, alegria se põe à mesa. A festa tem que ter sempre a comida, a gastronomia, que é algo que perpassa por toda a nossa cultura, por toda a humanidade. Talvez, por isso, a gastronomia seja sempre lembrada e valorizada nas Bienais do Livro e ela faz a conexão. Temos como desafio abrigar uma programação tão grande, com mais de 50 eventos, sendo a maior do ponto de vista de programação”

Solange Petrosino, curadora do Espaço Educação 

A 27ª edição deste ano conta com a estreia de um espaço que visará promover discussões e conversas de temas socialmente palpitantes, como educação ambiental, reforma curricular, políticas educacionais, BNCC, entre tantos outros. A curadora, Solange Petrosino, é, entre tantos outros talentos, uma palestrante especializada em educação que conta com mais de 20 anos de experiência como educadora. 

Solange argumenta: “Não se fala em formação de leitores e desenvolvimento da capacidade leitora sem falar em educação, sem cuidar de educadores, dos gestores, dos pais que também são educadores, da comunidade como um todo. Então, o Espaço Educação pretende ser esse espaço, que contemple diferentes interlocutores, que todos são importantíssimos nesse conceito de educação voltada para a literatura, para o leitor e para a ampliação dos saberes”

Tiago Marchesano, curador do BiblioSesc 

O espaço BiblioSesc contará com a Praça da Palavra e a Praça de Histórias, um local destinado a valorização dos livros e incentivo ao hábito da leitura. Tiago Marchesano, representante do Sesc SP, parceiro do evento, é o curador responsável por essa área. 

Poeta, artista plástico e produtor cultural, Tiago tem experiência em trabalhos educacionais e culturais; desde 2017 é animador cultural do Sesc SP. O curador declara:Em 2024, contribuiremos com uma parcela da programação do Salão de Ideias e com diversas atividades no estande das Edições Sesc, além da Praça da Palavra e da Praça de Histórias, com os trânsitos biblioteca do programa BiblioSesc e ações para todos os públicos. Serão bate-papos, contações de histórias e apresentações artísticas, entre outros formatos, fomentando reflexões acerca de questões fundamentais para entendermos nossas presentes e vislumbrarmos perspectivas coletivamente, e, sobretudo, estimular a prática da leitura e a formação de leitores e leitores”

Cassia Carrenho, curadora do Papo de Mercado 

O Espaço da Bienal Papo de Mercado surge com a proposta de promover uma conversa mercadológica entre os participantes convidados e os visitantes do evento, possibilitando uma troca de ideias entre profissionais do ramo editorial e os amantes de literatura. Cássia Carrenho é a curadora responsável pelo segmento nesta Bienal. Sendo Diretora de comunicação e relacionamento na Faculdade LabPub e também vice-reitora da instituição, ela possui vasta experiência na área editorial. 

Cássia analisa: “Já trabalhei no mercado editorial e fiz a curaria do ano passado e esse ano do encontro de editores, livreiros, distribuidores e gráficos, também da CBL. A Bienal do Livro traz um outro público do setor, que são autores, tradutores, revisores, e que nem sempre têm espaços para ampliar diálogos. O grande desafio é criar uma programação que seja atraente para esses dois públicos e debater ideias sobre as leis que estão em pauta, as grandes discussões e temas de interesse, como inteligência artificial”

Foto: Reprodução Câmara Brasileira do Livro (CBL)

O que esperar da Bienal deste ano?

A Bienal é um marco do mercado editorial. Números de vendas, lançamentos exclusivos, promoções e até mesmo brindes distribuídos fomentam e impulsionam o mercado editorial. 

Entretanto, não considero apenas o lugar de consumo. Há tempos, cada nova edição está consolidando uma nova perspectiva: o laço social e cultural criado pela Literatura. Este glorioso novo hábito é o resultado do trabalho conjunto dos idealizadores do evento, dos curadores, das editoras participantes e, principalmente, do público. 

A Bienal tornou-se um lugar de encontro e, especialmente, de história. Estaremos todos reunidos em nome da Literatura e razão mais nobre, não há, certo? 

Diante do extenso e plural grupo de curadores selecionados para a 27ª edição, certamente encontraremos um evento multidiversificado para todos os públicos amantes de Literatura. 

Vale a pena conferir: 

No dia 24 de abril, o site oficinal da Bienal de São Paulo anunciou os curadores selecionados neste ano. Além da apresentação nos nomes e das áreas encarregadas, a publicação também fornece declarações pessoais de cada um deles. 

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Assim como há dois anos, a Bienal é um evento ansiosamente aguardado. Neste ano, a 27ª edição ocorrerá somente em setembro, entre os dias 06 e 15. As expectativas estão crescendo, especialmente depois da divulgação dos curadores e dos espaços que estarão presentes este ano. Vamos aguardar por maiores detalhes! Alô, Bienal! Já, já estaremos aí!

Atenciosamente, 
Julia.

Nonsense – O Surrealismo da Literatura

Nonsense (def.): a expressão de origem inglesa nonsense foi criada para denotar algo sem sentido, nexo, lógica ou coerência. 

Humor Nonsense

A Literatura tem a formidável capacidade de instigar o imaginário – seja o do leitor, como comumente ocorre, ou mesmo do próprio autor. No último caso, entretanto, há a possibilidade de um ápice para o uso da imaginação: um estilo de criação de escrita que não somente inspira-se no imaginário, mas sim, em sua essência, concentra-se no subconsciente e nos artifícios que dele podem ser originados.

E se o fluxo desse estilo de criação fosse tão intenso ao ponto de criar uma lógica própria, descaracterizada de um senso comum e inimiga das normas da razão? Surge, então, a literatura nonsense

Repleta de características ímpares e pouco usuais, os escritos nonsense banham-se de uma própria linguagem: o constante uso de neologismos [criação de novas palavras ou atribuição de novos sentidos a palavras existentes], de palavras-valise [palavras novas originadas da junção de outras já existentes], alegorias e, especialmente, metáforas. 

O nonsense não somente ignora o aceitável e lógico e rejeita o senso comum; é um desafio constante aos parâmetros da lógica e da coerência e, acima de tudo, um afronte aos impostos limites da criação imaginária humana. 
Seria, então, o nonsense a ausência da lógica e da razão ou a presença de uma lógica não-linear, oculta nas entrelinhas e dotada de um fio condutor próprio e extra-autêntico?

O Surrelismo da Literatura

A literatura nonsense popularizou-se no século XIX, no Reino Unido, com dois grandes expoentes: Edward Lear (1812-1888), escritor de poemas, e Lewis Carroll (1832-1898), pseudônimo adotado por Charles Lutwidge Dodgson, famoso escritor inglês responsável pela autoria de “Alice no País das Maravilhas” (1865). 

O universo criado por Carroll em Alice nos País das Maravilhas exemplifica o estilo de criação nonsense em todos os âmbitos: na percepção de personagens, como o Chapeleiro Maluco, na ambientação dos cenários, como nas primeiras cenas da obra na toca do coelho, e no fluxo de consciência da protagonista, notado nos conselhos que recebe da Lagarta.

Carroll evoca uma percepção onírica que fascina qualquer leitor diante de um mundo repleto de uma lógica não-linear, de um humor desconexo e de situações que seriam comumente pouco críveis mas, na narrativa, assumem tons serenos. 

A Festa do Chá, ilustração feita por Lewis Carroll

Nesse sentido, o não-lógico abandona seu status de estagnado e subestimado e torna-se a oportunidade do novo. Esta percepção, possivelmente originada da literatura inglesa nonsense, reverbera suas características também no ramo artístico. 

O destaque ao subconsciente, a presença onírica, o abandono do senso comum, o uso de um fio condutor de sentido próprio e pouco convencional clama pelo Surrealismo

A estética surrealista transborda, em tese, a mesma essência do nonsense. Diferenciados por formas e métodos, ambos transformam em realidade algo que, na percepção comum, estaria fora de cogitação. O inimaginável diferencia-se do impossível; agora, toda criação que parta da imaginação tem lugar para sua existência. 

O Jogo Lúgubre, Salvador Dalí (1929)

Salvador Dalí, um dos maiores pintores do século XX e grande símbolo surrealista, concretiza em suas obras e na sua própria imagem que toda percepção é crível e possível. 

Seria o Chapeleiro Maluco capaz de pintar como um surrealista? Seria Dali um grande anfitrião em uma festa do chá com a Lebre de Março? Independentemente das circunstâncias, artistas surrealistas e escritores nonsense compartilham do mesmo espectro: a possibilidade de um criar ilimitado, irrestrito, extra-autêntico, dotado de uma lógica não-linear própria e, acima de tudo, diferenciando-se ao senso estético comum. 

Vale a pena conferir:

O artigo “O mestre do nonsense”, escrito por Marina Della Valle no blog Quatro Cinco Um, destaca nas obras de Lewis Caroll os elementos nonsense presentes, indicando suas possíveis origens e atribuições. O escrito, publicado em 2018, dedica-se a explorar esta forma de criação literária. 

O texto “O nonsense como crítica da lógica” de Mário Renato dos Santos, publicado em 2018 no site da Biblioteca Pública do Paraná, acrescenta à discussão as estratégias de Lewis Carroll e as versões anteriores que sucederam sua mais famosa obra, Alice no País das Maravilhas. 

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A ideia deste texto surgiu há um ano, durante uma aula de Literatura em que percebi as semelhanças entre a literatura nonsense e a arte surrealista. O desafio à lógica e ao senso comum que ambos estilos de criação imprimem é uma inspiração constante para todo tipo de criação humana. 

Atenciosamente,
Julia.

Zuzu Angel – Moda, Memória e Liberdade

Em 05 de junho de 1921, na cidade de Curvelo, em Minas Gerais, nasceu um dos maiores nomes da moda nacional e da luta pelos Direitos Humanos no país: Zuleika de Souza Netto, a grande estilista brasileira Zuzu Angel. 

Zuzu passou os anos iniciais de sua vida em Belo Horizonte e em Salvador, onde absorveu inúmeras referências da cultura popular que futuramente seriam englobadas em suas criações. Em 1939, mudou-se para a cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro, onde permaneceu até sua morte. 

Casou-se em 1943, aos 22 anos, com o americano Norman Angel Jones e passou a adotar o nome de Zuleika Angel Jones. O casal teve três filhos: Stuart, Ana Cristina e Hildegard. O casal viveu em Ipanema até 1960, quando o casamento chega ao fim. 

O nascimento de uma moda (autenticamente) brasileira

Em um contexto em que a moda brasileira era regida por inspirações, tendências e parâmetros internacionais, além de alinhar-se a tecidos e modelos já padronizados, Zuzu Angel utilizou sua genialidade logo na primeira inovação que propôs: saias feitas com pano de colchão. 

A inovação não surpreendia apenas pelos preços acessíveis; os tecidos traziam cores (especialmente verde, rosa e bege) e estampas pouquíssimas utilizadas até então. Da inspiração nasceu a Zuzu Saias, confecção com o ateliê na própria casa de Zuzu, em Ipanema.

Graças aos ciclos sociais em que frequentava, conheceu Sarah Kubitschek, esposa de Juscelino Kubitschek e fundadora da obra as Pioneiras Sociais, que objetivava costurar roupas para crianças carentes e que contou com o apoio de Zuzu. 

Contatos possibilitaram que seus desfiles fossem frequentados pela alta sociedade carioca e a estilista em ascensão participou como figurinista de filmes e de peças teatrais nacionais. Sua inspiração estava nas referências brasileiras: cores, rendas, chita, madeira, contas de bambu e estampas com temas nacionais, que, até então, não eram considerados elementos elegantes. 

Zuzu Angel foi a primeira marca brasileira a ter repercussão internacional. Sua coleção, que apresentou baianas e cangaceiras em versão alta costura, foi exposta na Bergdorf Goodman na Quinta Avenida, em Nova Iorque. A estilista declarou ao New York Times: “No meu país, eles acham que moda é frivolidade, futilidade. Eu tento lhes dizer que moda é comunicação.”

Graças a imensa e positiva recepção de suas coleções, Zuzu Angel torna-se um talento internacional. Ela não tinha somente o domínio técnico: sua criatividade e autenticidade foram os elementos primordiais que lançaram a moda brasileira ao cenário internacional. 

Ronaldo Fraga, também estilista brasileiro, afirma: “Eu, sem sombra de dúvidas, a coloco como a estilista mais original. Ou talvez a primeira estilista a falar de temas hoje ainda caros no Brasil. A primeira estilista a falar em legitimidade na moda brasileira.”

O desaparecimento e a morte de Stuart Angel

Stuart Edgar Angel Jones (1946-1971), filho primogênito de Zuzu e Norman Angel, foi estudante de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante da luta armada contra a Ditadura Militar (1964-1985). No final dos anos 60, ligou-se ao Movimento Revolucionário de 8 de outubro – o conhecido MR-8 – e, como forma de  preservação e  segurança para sua família,  passou a adotar o codinome Paulo. 

Entretanto, em 1971, o jovem de 25 anos foi capturado no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Stuart foi preso, torturado e assassinado no Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA), localizado na Base Aérea do Galeão.

Zuzu Angel recebe em 1972 uma carta-testemunho de Alex Polari, ex-companheiro de militância que foi preso junto com Stuart. No conteúdo da carta, a mãe, que até o momento pensava que o filho continuava desaparecido, toma conhecimento sobre sua morte. A estilista brasileira inicia, então, uma incessante caçada para descobrir as circunstâncias do desaparecimento do filho, além do reconhecimento oficial de sua morte pelos agentes da Ditadura Militar e da questão crucial sobre onde estaria seu corpo. 

Em 2013, durante seu depoimento na Comissão Nacional da Verdade – organizada para apurar as violações dos Direitos Humanos cometidas entre os anos de 1946 e 1988 no Brasil -, Alex Polari reitera cada palavra escrita na carta de 23 de maio de 1972 endereçada a Zuzu Angel. 

Moda Política

Em 1972, ciente da morte de Stuart, Zuzu Angel organizou um desfile em protesto ao ocorrido. O evento aconteceu na casa do cônsul brasileiro em Nova Iorque. A estilista teve uma astuta estratégia: diante do decreto nacional que proibia que qualquer brasileiro deteriorasse a imagem do Brasil no exterior, o desfile ocorrendo na casa do cônsul também estava em território nacional brasileiro. 

As modelos selecionadas usavam figurinos bordados com fuzis, tanques e canhões, além de anjos amordaçados e meninos aprisionados; a própria estilista estava com um visual impactante: totalmente  vestida de preto, com um cinto de cem crucifixos e segurando um anjo de porcelana. 

Mesmo ciente das perseguições e ameaças que sofria de agentes ligados à Ditadura Militar, Zuzu Angel passou a denunciar à imprensa e aos órgãos internacionais as circunstâncias da morte de seu filho. Na vinda do secretário do governo americano, Henry Kissinger, ao Brasil, ela entregou pessoalmente uma carta que exigia uma providência legal sobre a morte de Stuart, uma vez que ele era um cidadão americano.

Zuzu Angel em seu ateliê de costura. Foto: Acervo Instituto Zuzu Angel

Reconhecimento de Zuzu Angel

Em 14 de abril de 1976, Zuzu Angel sofre um acidente de carro na Gávea, na saída do túnel Dois Irmãos em São Conrado e falece no local. Apenas em julho de 2020, a Justiça Brasileira reconheceu as circunstâncias do acidente e que Zuzu Angel foi morta por agentes da Ditadura e, em sua causa mortis no obituário, passou a constar “morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro”

A incessante busca pela verdade e pelo reconhecimento da morte de seu filho Stuart, transformaram Zuzu Angel em um símbolo de resistência e de denúncia ante aos crimes cometidos pela Ditadura Militar (1964-1985). Além disso, a estilista brasileira é, possivelmente, uma das ativistas pioneiras sobre os Direitos Humanos no Brasil. 

Zuzu Angel não somente estabeleceu os parâmetros de uma moda verdadeiramente nacional como elevou a condição brasileira aos ambientes internacionais. A estilista simboliza a moda e a nacionalidade, a memória e a luta pela  liberdade. 

Vale a pena conferir:

O Instituto Zuzu Angel (IZA)disponibiliza grande parte do acervo iconográfico da estilista, especialmente seus croquis. É possível encontrar documentos, cartas e bilhetes pessoais, além de inúmeras fotos. 

No centenário de Zuzu Angel, há quase três anos completos, o Itaú Cultural fez uma publicação de homenagem à estilista, assim como a BBC Brasil – ambos destacam sua singular biografia, seu pioneirismo na moda nacional e os maiores atos de sua carreira.

Astrid Fontenelle, em seu canal no Youtube, dedica o décimo nono vídeo da série “Mulheres Admiráveis” a história de Zuzu Angel. Fornecendo detalhes da vida pessoal e profissional, o vídeo de, aproximadamente, 10 minutos faz um tributo à grande estilista brasileira. 

Há dez anos, o canal no Youtube da TV Cultura disponibilizou os arquivos visuais do desfile-protesto de 1971 feito por Zuzu Angel. Fragmentos do evento foram reunidos em um único vídeo.

Zuzu Angel. Foto: Acervo Instituto Zuzu Angel

Para estrear a coluna Biografias no blog, a primeira publicação é dedicada à brilhante estilista brasileira, Zuzu Angel. Em nome da Moda, da Memória e da Liberdade este texto é um tributo à Zuzu e à toda sua história. 

Inspiradamente, 
Julia. 

Uma cadeira entre os imortais

Publicado originalmente em 1979 pela Editora Record, a obra de Jorge Amado “Fardão, Fardão, Camisola de Dormir” teve sua primeira edição. Com a capa original feita por Jenner Augusto e ilustrações de Otávio Araújo, o livro foi traduzido em mais de 40 países. 

Membro da Academia Brasileira de Letras desde 6 de abril de 1961, eleito por unanimidade, Jorge Amado estava imerso em um universo restrito e conhecia, habilmente, os hábitos e as tradições da ABL. Em “Farda, Fardão, Camisola de Dormir”, o autor permite que os leitores desvendem alguns segredos desse universo à parte. A genialidade e sabedoria presentes em cada página desta obra rememoram os motivos de Jorge Amado ser um dos grandes nomes da Literatura Brasileira e Mundial.

A disputa pela imortalidade

Tão eterna quanto a literatura, são alguns imortais da Academia Brasileira de Letras. Sendo o ‘clube de homens mais fechado do mundo’, nas palavras de Austregésilo de Athayde, a ABL é formada por disputadíssimas 40 cadeiras, pertencentes aos intitulados imortais. 

O estopim da trama é desenrolado logo na primeira cena: morre o poeta Antônio Bruno, grande expoente da literatura brasileira e um dos 40 homens autorizados, por direito e tradição, a usar o fardão da Academia. Diante a tragédia, estava, então, aberta a vaga para a imortalidade. 

Ciente da exclusividade e do significado que a Academia Brasileira de Letras portava naquele contexto, o coronel Agnaldo Sampaio Pereira, avisado pelo desembargador Lissandro Leite, toma conhecimento a respeito de uma oportunidade única e formidável: a chance de ser o quadragésimo integrante da ABL. 

“Tome-se o exemplo do coronel Agnaldo Sampaio Pereira: tendo o poder das armas e da polícia, mandando e desmandando, senhor de cutelo e baraço diante de quem até os ministros tremem, não se sente plenamente realizado, falta-lhe a Academia. Ambição antiga, dos tempos dos primeiros (e renegados) versos, ilusão a acompanhá-lo vida afora.”

Farda, Fardão, Camisola de Dormir (pág. 31)

Cabe salientar que o ocorrido situa-se no ano de 1940, período do Estado Novo. Jorge Amado transporta os leitores, de maneira admirável, a reconstrução dos eventos históricos e a crítica por trás do ocorrido: a Academia, que representava, segundo o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), um lugar de subversivos, abria a oportunidade para um militar ser um de seus membros. 

Sendo um dos vorazes nomes do Estado Novo, o coronel Sampaio Pereira era adepto declarado do nazismo e declarava sua constante ‘guerra sem trégua contra os inimigos da pátria’. 

“Homem de ação, igualmente homem de pensamento com vasta obra de teórico a conquistar-lhe títulos e louvores no campo das letras: ‘um dos mais copiosos e atuantes escritores de sua geração, fecundo pensador político, ensaísta de voo pinacular’ e por aí afora. Seus livros faziam a apologia e a propaganda dos regimes fortes, analisavam a decadência e a podridão das democracias, denunciavam o monstruoso perigo comunista.”

Farda, Fardão, Camisola de Dormir (pág. 21)

Orientado pelo desembargador Lissandro Leite, já membro da ABL, o coronel Agnaldo Sampaio acreditava que, sendo candidato único, sua vitória seria unânime e esplendorosa. Entretanto, o desembargador não esclareceu ao militar os ânimos da Academia quanto a sua candidatura. 

Considerando um ultraje à memória de Bruno, os demais imortais repudiavam a possibilidade de eleição de Sampaio Pereira. Entretanto, em tempos de Estado Novo, quem teria coragem de ser oposição declarada? 

Jorge Amado, neste ponto, nos apresenta a dupla formidável Afrânio Portela e Evandro Nunes dos Santos, os líderes da brigada. Recusando-se a entregar a eleição ao coronel, mestre Evandro e mestre Afrânio começam a tecer o lado da oposição. De forma sútil, estratégica e bem pensada, ambos desenham uma nova possibilidade para a votação. 

O candidato alternativo não poderia ser um civil (quem, em sã consciência, ousaria enfrentar um militar da ativa?). A opção restante era lógica: somente recorrendo a hierarquia militar para conseguir derrubar o coronel. 

Lembrado por Rodrigo Inácio Filho, o General Waldomiro Moreira tinha o perfil necessário: era declaradamente antinazista, pró-aliados da Segunda Guerra, sem compromissos com o Estado Novo e disposto a enfrentar Sampaio Pereira. 

Um jogo desenha-se em torno da votação: o coronel Agnaldo Sampaio Pereira, apoiado pelo fiel desembargador Lissandro Leite, que o prometeu a eleição, contra seu oponente, general Moreira, indicado pelos mestres Evandro e Afrânio.

A seriedade e a tensão deste momento desencadearam uma verdadeira batalha entre os imortais e aqueles que desejavam poder usar tal título junto ao fardão.  Os candidatos tinham a missão de convencer os 39 acadêmicos vivos de que eram merecedores de seus votos. 

Tamanho brilhantismo na descrição e perspicácia da construção dos cenários e personagens, Jorge Amado ergue o desejo pela imortalidade a um nível estratégico presente no limiar da presença humana e do complexo de Deus. 

Deliciosas passagens que levam o leitor envolto no deleite da perspicácia do autor. Dotado de humor crítico, a votação torna-se um verdadeiro jogo político desenhado e composto por personagens do enredo principal e secundário. Cada um é capaz de redefinir os rumos da eleição em favor de seu candidato. 

Lembrem-se: nas palavras de Lissandro, o voto de Pérsio Menezes vale por cinco. 

Apesar de não estarem no cerne da votação, que era restrita aos membros da ABL, as personagens femininas desempenham um papel primordial no enredo. Um destaque ao brilho de Maria João, atriz e um dos ex-amores do poeta Bruno, ovacionada dentro e fora dos palcos e responsável por ajudar os mestres Afrânio e Evandro a conseguir preciosos votos. A querida Pru, filha mais nova do desembargador Lissandro, encarna as vontades da juventude militante de outrora. Contrariando seu nome de batismo, Prudência não estava entre suas qualidades. 

As personagens apresentadas na obra moldam os entraves de todas as cenas. Dotadas de personalidades bem construídas e ressaltadas, tais personagens mostram seu entendimento e seu engajamento político. Jorge Amado, assim, ressalta o protagonismo feminino. 

A disputa pela cadeira de Bruno tem um final inesperado, o que comprova, novamente, a sagacidade de Jorge Amado em tecer enredos intrigantes e envolventes até as últimas páginas de sua obra. 

***

Republicado a partir de 2009 pela Editora Companhia das Letras, a nova edição de “Farda, Fardão, Camisola de Dormir” conta com uma nova capa e um posfácio escrito por Alberto da Costa e Silva. 

O livro é capaz de reacender o interesse pela rica e deslumbrante Literatura Brasileira, contando com passagens que transbordam ironia, sarcasmo e diversão, sem perder jamais o tom crítico e analítico.  O autor escreve com tamanha maestria que encanta os leitores a cada palavra e, simultaneamente, consegue valorizar a pluralidade da língua portuguesa. 

Mestre em descrever cenários e construir personagens, Jorge Amado é um dos maiores nomes literários que temos na História. 

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Fotografia: Julia Santos Neves

Postagem original feita no Instagram 

Para estrear a coluna de Literatura do blog, queria trazer uma obra brasileira. Sendo assim, nada melhor do que Jorge Amado para esse início. “Farda, Fardão, Camisola de Dormir” é um dos mais belos livros que já li.

animadamente, 
Julia.

Alimentados por Sonhos e Utopias

Foi-me dito que sonhar muda o mundo. Todavia, aparentemente, ninguém teve a decência prévia de explicar o porquê da afirmação. Se antes confiávamos que a origem da frase residia no sentido de que a vida, em sua forma mais positiva, é o agente transformador. Hoje, na famigerada casa dos 20, consigo perceber que é uma origem camuflada. 

Simples porque:  ninguém queria explicar o porre que seria. Talvez para desviar de ansiedade e desânimo em relação ao futuro, ou então evitar grandes explicações sobre as implicações contínuas da vida adulta. De qualquer forma, muitos foram aqueles que palpitaram sobre o nosso futuro e pouquíssimos aqueles que minimamente nos prepararam. 

E no futuro chegamos. E honestamente? Aqui tá todo mundo cansado. Ninguém sabe para onde ir ou quem ser. Perdemos inúmeras e substanciais coisas no meio do percurso e hoje estamos com dificuldade em lembrar que coisas eram. 

Os sonhos passam a ser disfarçados por metas e objetivos e agora são medidos em rendimento, assim como a nossa vida. Desejávamos certas profissões pela vontade de ser, agora precisamos delas para sobreviver, ou pior, para encontrar um objetivo único de vida. A loucura e o divertimento ficaram para trás, não só como memórias, mas agora também como aspectos proibidos da vida adulta séria, profissional e de sucesso. 

Será que parte do processo é esquecer como era bom viver? 

A conclusão esmagadora é de que a vida depois da infância entra em rendimento decrescente de sonhos. 

Porque no meio desse caminho torto, cansativo e exaustivo nos disseram que os sonhos de nada valiam e o conselho inicial foi ignorado. Uma parte de nós foi esmagada e substituída por uma angústia constante que não sabemos explicar ou combater. Infelizmente, aos 18, nenhum de nós recebeu o manual de sobrevivência de que estamos precisando. 

O futuro e suas maravilhas. Duas opções: ou o futuro que esperávamos ainda não chegou ou fomos enganados com um bilhete falso pro País das Maravilhas. Uma pena que não haja um tribunal disposto a  julgar um processo de retratação nesse caso.  A Corte dos Frustrados e Ludibriados deve ser exclusividade do País das Maravilhas. 

Podemos não conseguir uma auditoria, mas ninguém nos impede de criar uma; a vida adulta tem certas regalias. O ciclo de constantes angústias pode ser rompido com um pouco de empenho e um pouco de delírio. Deixamos a imaginação em escanteio por muito tempo, está na hora do comeback.  

Viver a própria Utopia para conseguir sobreviver fora dela. Imaginar a mudança para poder ver alguma esperança. Quando somos alimentados por sonhos e utopias não sobrevivemos mais, voltamos a existir e a viver.

Isso não significa que iremos sempre acertar nos sonhos. Entretanto, enquanto expressarem emoção, sentimento e razão estamos começando a alinhar o caminho.

Relaxa, bem. Não se preocupe. Uma hora a gente acerta. 

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No último sábado (23/09/2023) durante a exibição do programa televisivo Altas Horas, liderado pelo querido Serginho Groisman, a banda de rock nacional Titãs contou com inúmeras homenagens. Entre elas, os antigos professores dos integrantes da banda foram prestigiá-los no programa. Emocionados pela ocasião, uma das presentes docentes em seu discurso fala sobre aqueles, na sociedade brasileira, que seriam ‘alimentados por sonhos e utopias’.

Inspirada pelo programa e especialmente por essa declaração, tomei a decisão de, humildemente, escrever o texto de hoje.

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Arte feita por Julia Santos Neves 

Todos os elementos da colagem acima são devidamente creditados no post original no aplicativo Landing (basta clicar para acessá-lo).

Para o retorno do blog, nada mais justo e verdadeiro do que a publicação de mais um texto para a coluna ‘Reflexões & Devaneios’. Tendo em mente sonhos e utopias, permita que este escrito traga novos ares e novas perspectivas. 

Virtuosamente, 
Julia.

Alguns e outros de nós

Somos os que emergem e afundam na mesma intensidade. Os escolhidos simultaneamente pela glória e pelo fracasso. Os que conhecem as montanhas e os penhascos e os que vivem tudo isso às vezes sem nem mesmo existir. 

Alguns de nós são devotos do próprio ser, onipotentes da própria alma e oniscientes da própria mente. Outros são o vazio da vida ou ausência do caminho. 

Com tantas controvérsias e paradigmas, de alguma forma, somos os libertadores e os aprisionados e somos a criação que sonha ser o criador.

A maioria das vezes que tentamos criar, fracassamos como criaturas. De nada a nossa criação foi como o desejado, porque no fundo não sabemos mais o que desejar.

Talvez porque nesse processo muito se quis e pouco se deu. Porque o criador e a criação jamais se entenderam, jamais cooperaram em uníssono e jamais chegaram onde desejaram. 

O criador nunca criou de verdade. 

A criação nunca foi feita por completo. 

Porque o esforço foi infrutífero e não se soube o que era reconhecimento. A criação que criamos de nada importa se é só a vazio que dela restará. 

E o processo foi cansativo mas só alguns e outros como nós entenderam.

Talvez porque somos os esquecidos que esqueceram-se de esquecer. Os perdidos abandonados pelo tempo e pelo espaço. Os espíritos que não partiram ou desapareceram, apenas foram ficando.

Somos os que aprenderam a sentir, mas nem sempre a dizer. Aqueles que queriam existir e não esquecer. 

Somos a alma angustiada, fraudada por cores e vidas. Somos a dor que nunca some, a alegria que não nasce e a tristeza que não se perde. 

Somos o Ninguém e o Nada é o lugar que chegamos, ou melhor, o único que criamos.

Os esquecidos que foram abandonados mesmo antes de existir; os amantes que jamais conheceram o amor; os poetas que abandonaram a poieses

Somos os que foram abandonados, deixados e largados às margens das maravilhas que um dia nos prometeram. 

Somos a esperança dos tempos de glória e a desgraça dos tempos da derrota. 

Somos aqueles que sonham mas, que na maioria das vezes, alucinam. 

Somos os que tentam e persistem; somos o que podemos e fazemos o possível. 

E às vezes somos o desespero de se ver em todo lugar e não pertencer a nenhum.

Somos o delírio da alegria de viver e o abismo do desassossego de existir. Seremos o Passado, o Presente e o Futuro; mas mesmo assim seremos os ausentes.

E nada de redundante temos nisso tudo; só queremos a opção de, pela primeira vez, não precisar mais ser. 

***

Arte de Aarti Shinde

O texto só para aqueles que sabem quem são.

Espirituosamente, 
Julia.

Quando o relógio trava

Dificilmente o Tempo foi aquele que forneceu o alento de que tanto precisávamos. O senhor da verdade, na maioria das vezes, foi o catalisador de boa parte do tormento. Se não era suficiente ser assombrado pela sua existência, convivemos com a materialização da sua presença através do bendito do relógio.

Contando, regrando e regendo os segundos; vemos a precisão que não temos. A frequência ininterrupta que não tolera erros. Porque os erros geram atrasos e os atrasados não terão seu lugar garantido – aqui e no agora ou na história que o Tempo resolverá contar.

A Mente tem dificuldade de acompanhar o Tempo e o Tempo mostra desprezo pela Mente. Escolheu deixá-la em agonia do que ter a descendência de ensinar-lhe sobre a paciência. Preferiu exibir o incômodo silêncio de acompanhar os ponteiros. Enquanto estes têm função, seguimos à deriva. Enquanto têm propósito, seguimos ao acaso. 

Entretanto, o acaso nada tem de aleatório. É justamente o outro lado que reage pela falta de condescendência. E, neste instante, a mente resolve desafiar o perfeccionismo crônico do Tempo; é o instante em que a ordem natural quer colapsar o status quo.

A ideia não surge eventualmente, é quase programada. Há um momento específico que gera toda esta catarse: é quando o relógio trava.

O ponteiro não avança. Trava, estaca no mesmo lugar. Mesmo insistindo, o ponteiro apenas vai e volta para mesma posição, retorna ao mesmo segundo, congelando o tempo em uma única fração. E é aqui em que surge a Esperança. 

Esperança de que há tempo para mudar – retirar o que foi dito, desfazer o que foi pensando, escolher outra versão para ser hoje. 

Enquanto o ponteiro não se mexe, ainda há especulações. Do que pode ser feito; onde pode-se chegar. De quantas músicas podem ser escutadas, quantas páginas podem ser lidas ou quantas histórias podem ser contadas, quanto planos podem ser feitos no meio disso tudo. 

O alívio momentâneo é a sensação de que não há mais uma corrida. É a fração de segundos em que a linha de chegada desaparece; já que não há lugar para se chegar. O Tempo está congelado para que possamos aproveitar e aproveitamos porque vemos o Tempo deixar de ser tempo

E, infelizmente, é aqui que nos esquecemos. Esquecemos que a falha mecânica foi apenas momentânea e afetou exclusivamente um dos milhares de relógios que nos cercam. Quando percebemos que não há muito para se ver além disso, ficamos desolados e estagnados, pensando em como nossa Mente foi tola ao pensar que haveria um momento de rebelião. Queríamos acreditar que havia um sinal que indicasse uma conspiração maior para desafiar o Regimento do Tempo.

Entretanto, não há tolice; há reflexão. Mesmo com pouco a ser visto, há muito a ser olhado. 

A vontade do desafio é o sinal do desejo de não ser mais guiado, conduzido, condicionado e pressionado por aquele que se diz o Senhor da Verdade. É a dica para não esperar pelo momento em que o relógio trave enquanto podemos travá-lo por conta própria. 

É o instante em que o relógio passa a ser mais um daqueles que deixaremos para trás, do mesmo jeito como o próprio Tempo nos deixará. É acelerar um processo, só que em seu sentido, caminho e direção próprios. É viver pela vida e não pela existência. É cronometrar os momentos e não de horas. 

***

Arte de capa de Salvador Dalí, ‘A persistência da memória‘ (1931)

Que mesmo com os ponteiros funcionando em plena ordem, o status quo seja abalado.

Pontualmente,
Julia.

Tudo que é sólido se volatiliza

Adoraria dizer que o pouco alento e a pouca estabilidade que encontramos na vida está nas coisas concretas e sólidas que nos cercam. Buscamos por eles pois nos atormenta entender que não há possibilidades para tais coisas. 

E nos atormenta mais ainda começar a perceber que são poucos os momentos que as encontramos. 

Buscamos o conforto que a estabilidade traz a qualquer custo e a qualquer esforço. Entretanto, a angústia jamais some. Por mais concreto que imaginamos certas pessoas, ocasiões ou planejamentos há uma parte do ser – que muitos diriam ser maldita – que não se conforma. 

O sexto sentido, a percepção aguçada, ou como queira chamar, já nos avisa de antemão: algo dará errado. Uma vez que nada é ao acaso, sabemos – sem jamais admitir – que no fundo tudo que é sólido se volatiliza. 

Estamos todos aflitos e sabe os por quês disso tudo? 

Porque a mesma vontade de viver pode transformar-se na vontade de desaparecer em instantes. 

Porque a angústia, a mágoa, a dor podem deixar sua essência de tormento; enquanto a alegria e a felicidade viram um falso alento.

Porque a admiração pode transformar-se em desprezo e a indiferença em apreciação. 

Porque a vida se edifica da mesma forma como se destrói, já que o concreto é uma ilusão tão desleal quanto um castelo de areia. 

Ouso ir mais longe: a única coisa sólida em que podemos nos equilibrar são os nossos próprios sonhos, construídos e moldados por nossas vontades e ambições. É o imaginário que propicia a essência de vida que nos ergue a cada dia. É o lúdico que permeia cada entranha do ser que nos permite sonhar e pelo sonhar nos permite existir. 

É a vida que se solidifica, erguida em um mar de volatilidades. É o ser que se molda de sonhos porque acredita merecer ser alguém. É o Universo que se encanta pela possibilidade de existir e de destroçar na mesma intensidade. 

É o Caos que encontra a Calmaria na própria existência. É a Serenidade que irrita-se pela falta do Agito. 

É o Equilíbrio do Desequilíbrio que nos ajuda a encontrar as vidas que sonhamos, que tivemos e que um dia teremos. O caminho turvo que nos permite apreciar a diversão entre cada uma de suas curvas. 

Se a Incerteza é a prova concreta de que certezas existem; o Sólido indica e nos prepara para as avalanches de todas as volatilidades que nos cercam. 

Se o certo é duvidoso e o incerto é possibilidade concreta, a Existência desenha-se em seu esplendor em Castelos de Volatilidade e Nuvens de Concretude. 

Deixe o Ser deixar de existir e o Nada transformar-se em tudo. Deixe o processo inverso acontecer também. Apesar da humilde sugestão, não esqueça que não temos autonomia completa em nenhum dos casos. 

Espero que a Volatilidade construa o que queira e o Sólido desmanche-se a sua própria medida. Espero que ambos se destruam e se ergam. Espero que encontrem o significado de Equilíbrio nesse Desequilíbrio que chamamos de vida. 

E espero que estejamos todos nós em cada uma dessas partes que jamais evitaremos.

***

Arte de capa de Piet Mondrian

Que o texto de hoje seja um alento – ou tormento – a quem o leia.

Ponderadamente, 
Julia.

Aqueles que não voltarão

Estamos em uma dívida constante com os Senhores do Tempo. Cobramos do Passado os dias que uma vez chamamos de hoje e a vida que chamávamos de nossa. Devemos ao Presente a vontade de viver que reservamos as expectativas do Futuro. Esperamos do Futuro a concretização de tudo o que sonhamos no Passado e no Presente. 

A dívida é formada pela incapacidade de mensurar. Mensurar quanto do Passado deixamos que nos afete; o quanto do Presente permitimos que se possa agir; quanto do Futuro podemos criar expectativas. 

Não entendemos os Senhores porque deles não sabemos nada sobre e, na maioria das ocasiões, ignoramos o que pouco entendemos. Entretanto, há um resquício da sua presença que nos acompanha. A memória viva da sua presença está em quem nos cerca: nos que caminham conosco há um tempo, nos que surgiram agora e naqueles que um dia aparecerão. 

O difícil está em reconhecer quem são e em que temporalidade da vida ficarão. Certas pessoas gostaríamos que ainda estivessem no agora. Outras foram embora e preferiram ficar no Passado ou foram deixadas lá permanentemente. Algumas desejamos reencontrar em um dia próximo. O resquício do Tempo que nos acompanha é tão fluído quanto o próprio. 

A conformidade não é tão presente como deveria. Mal dizemos a passagem do tempo e mal compreendemos quem estava, está ou estará durante todo o processo. Se o Tempo é o Senhor da Verdade, por que não teve a decência de ensinar a todos nós esta parte? 

Por vezes só desejamos relembrar o que fomos. Talvez, aqueles que sejam dotados de boa memória possam reviver o que já chamaram de vida – em todo seu esplendor e ênfase – outra vez. Quem sabe, alguns privilegiados tenham a possibilidade de, por um nanosegundo, guiar a mente, alma e coração ao Passado e revivê-lo como se fosse o Presente. 

Ótimo feito aos que conseguem. Contudo, espero que saibam fazer a viagem de volta. 

Ao Passado das memórias, ao Presente das angústias e ao Futuro das esperanças: todos, uma hora ou outra, representam a vida e suas escolhas. Querer fragmentá-los e dissociá-los não é coerente; muito menos, esperar que se aglutinem. 

Não há alento em ficar preso às memórias. A alegria da volta será momentânea, assim como a própria vida. Quanto mais apegado ao que já se perdeu, menos lúcido do agora estará. 

Deixamos parte da vida para trás. Dissemos Adeus pela última vez. 

Sabendo disso, temos consciência daqueles que não voltarão. Daqui a uns anos serão apenas uma memória turva, uma sombra presente, em um vestígio do passado. Sua presença não é ignorada, muito pelo contrário. Apenas preferimos deixá-las como memória; deixá-las como lembrança, mesmo que efêmera, daqueles que não voltarão. 

São aqueles que não permitimos trazer ao Presente. Deixamos sob o único encargo do Passado. Alguns deles se perderão pelo caminho e outros deixamos por conta própria lá.

Não me assusta concluir que, um dia, também serei uma dessas pessoas. Ficarei para trás reservada a uma pequena memória ou ao total esquecimento. E de nada me assusta.

Talvez o limbo das ideias e das lembranças seja apenas um lugar para existir – ou deixar de existir. É um vazio repleto de tudo e nada – tudo que já foi; nada que sobrou. O ambiente das próprias personas que foram enterrados, de quem esteve neste tempo e não caminhou conosco depois. 

Por isso, deixe-me no Passado sem qualquer pesar ou ressentimento. É um lugar a que pertenço; senão agora, em um Futuro – próximo ou não. 
Já que deixei tantos outros lá, por que não seria capaz de ficar eu mesma? Em algum ponto, cada um de nós compõe aqueles que não voltarão na vida de alguém.

***

Arte da capa de Lesley Oldaker

Sem ressentimento dos Senhores do Tempo desta vez. Obrigada pela leitura. Até breve!

Atenciosamente, 
Julia.

Vienna

O alento que Billy Joel nos ofereceu

Estar à deriva da Vida traz à tona alguns elementos com os quais, muitas vezes, não estaremos preparados para lidar. Quando o desespero tomar espaço e a urgência tomar a mente, lembre-se que Billy Joel antecipou este movimento e criou um antídoto para este ciclo viciante da nossa própria existência.

Billy Joel – Vienna (Audio)

Slow down you crazy child
You’re so ambitious for a juvenile
But then if you’re so smart tell me
Why are you still so afraid?

Quantas vezes não sentimos uma necessidade incessante para ser e para ter mais. Exigimos um padrão acima de qualquer resquício de bom senso; apostamos o que temos e o que não temos em um futuro incerto e duvidoso. Estamos ávidos pelo o que podemos ter e podemos ser; esquecemos do temos e somos.

Where’s the fire, what’s the hurry about?
You better cool it off before you burn it out
You got so much to do and only
So many hours in a day

A cada instante, perdemos a capacidade de desacelerar o modo automático da vida. O desespero crescente de otimizar todas as horas do dia para fazê-las produtivas a todo custo. E, mesmo assim, ainda não estamos fazendo ou sendo o suficiente.

But you know that when the truth is told
That you can get what you want
Or you can just get old
You’re gonna kick off before you even get halfway through 
When will you realize, Vienna waits for you?

O ritmo frenético para chegar onde tanto se deseja; mas, jamais contanto com a garantia de que isto acontecerá. Entretanto, há um lugar que pode nos ofertar a calmaria que desesperadamente precisamos. Um lugar em que poderíamos reaprender a desacelerar.  

Slow down you’re doing fine
You can’t be everything you want to be before your time
Although it’s so romantic on the borderline tonight

Dê tempo ao tempo; dê tempo aos seus planos. Não exija demais. 

Too bad, but it’s the life you lead
You’re so ahead of yourself that you forgot what you need
Though you can see when you’re wrong
You know you can’t always see when you’re right

Presos à ilusão de que o futuro nos envolve de forma reconfortante, esquecemos das partes da vida que realmente precisamos e que somente o tempo presente pode nos oferecer. 

You got your passion, you got your pride
But don’t you know that only fools are satisfied?
Dream on, but don’t imagine they’ll all come true 
When will you realize, Vienna waits for you?

A maravilha está na possibilidade, liberte-se para sonhar mais e aprenda que ainda há certa beleza naquele sonho pelo qual esperamos mas nunca aconteceu.

Slow down you crazy child
Take the phone off the hook and disappear for a while
It’s alright, you can afford to lose a day or two 
When will you realize, Vienna waits for you?

Permita-se perder-se no tempo algumas vezes; parte da vida é não saber onde, como ou quando iremos nos encontrar. Apenas não esqueça de recobrar os sentidos depois.

And you know that when the truth is told
That you can get what you want or you can just get old
You’re gonna kick off before you even get halfway through 
Why don’t you realize, Vienna waits for you?

***

Talvez, seja tudo uma questão de tempo. Travamos uma constante, inesgotável e exaustiva briga a todo instante com os Senhores do Tempo: Passado, Presente e Futuro. Reservamos ao primeiro os espaços da memória. Ao do meio, os espaços das angústias. E ao último, os espaços dos sonhos.

Nossa discordância não é singela. A inquietação vem da percepção de que para o Futuro estão reservados às glórias, o esplendor e magnificência que a vida tem a oferecer. Enquanto que no Presente, a agonia, a angústia e a ânsia por mais imperam. A necessidade de querer mais a todo tempo – ser mais; ter mais. 

O Futuro, sendo palco do desconhecido e sujeito da imprecisão, curiosamente parece ofertar mais que o Presente. Talvez, sonhamos tanto com o dia de amanhã justamente por poder sonhar. Enquanto ainda não for concreto, podemos modificá-lo em qualquer circunstância, vontade ou desejo. É o único momento em que podemos brincar com a onipotência. 

O Presente é aquele de quem mais guardamos ressentimentos, uma vez que dele exigimos muito e nos é exigido. Seu braço direito, o tal do Relógio, apresenta aos mais calmos a precisão da hora e aos mais rudes a corrida com ele. 

Entretanto, se guardamos todos os sonhos para o Futuro, de que será formado o Presente? Esquecemos que o dia de hoje já foi o palco dos sonhos uma vez e que passou seu título adiante junto com o decorrer da Vida. 

Haveria alguma escapatória para este combate com os Senhores? Não podemos julgá-los porque estão apenas fazendo seu trabalho, é uma questão impessoal. Quem sabe, não poderíamos aprender a enxergá-los de outra forma, encontrando alguma possibilidade de trégua.

Talvez, Vienna seja a cidade do Tempo Perdido. Onde um estabelecimento, com um piano ao centro, nos oferece a melodia do reconforto que tanto precisamos. Embora não seja a cidade de Proust, é o local onde no presente o imaginário e a vida ganham o espaço que merecem.

Um lugar em que os Senhores do Tempo respeitam a existência e que, pela primeira vez, encontram paz e harmonia entre si. Um ambiente onde as respostas não precisam ser ditas, haverá oportunidade para elas mais tarde. Não entenda mal, a cidade do Tempo Perdido não as ofertará, apenas servirá de guia para que todos possamos finalmente encontrá-las. 

Curioso pensar em um local como esse. Ninguém sabe ao certo como abrir as portas da cidade; contudo, uma vez encontradas as chaves, estas jamais se perderão. O primeiro passo já nos foi ofertado por Billy Joel quando reaprendemos pela prática a sensação de alento.  

Afinal, Vienna está esperando por todos nós. 

Lançada em 1977,  a canção de Billy Joel oferece muito a qualquer geração e qualquer indivíduo que se disponha a escutá-la. Resta-nos agradecê-lo por este alento. 

Obrigada pela leitura. Até breve!

Serenamente, 
Julia. 

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