Publicado originalmente em 1979 pela Editora Record, a obra de Jorge Amado “Fardão, Fardão, Camisola de Dormir” teve sua primeira edição. Com a capa original feita por Jenner Augusto e ilustrações de Otávio Araújo, o livro foi traduzido em mais de 40 países.
Membro da Academia Brasileira de Letras desde 6 de abril de 1961, eleito por unanimidade, Jorge Amado estava imerso em um universo restrito e conhecia, habilmente, os hábitos e as tradições da ABL. Em “Farda, Fardão, Camisola de Dormir”, o autor permite que os leitores desvendem alguns segredos desse universo à parte. A genialidade e sabedoria presentes em cada página desta obra rememoram os motivos de Jorge Amado ser um dos grandes nomes da Literatura Brasileira e Mundial.
A disputa pela imortalidade
Tão eterna quanto a literatura, são alguns imortais da Academia Brasileira de Letras. Sendo o ‘clube de homens mais fechado do mundo’, nas palavras de Austregésilo de Athayde, a ABL é formada por disputadíssimas 40 cadeiras, pertencentes aos intitulados imortais.
O estopim da trama é desenrolado logo na primeira cena: morre o poeta Antônio Bruno, grande expoente da literatura brasileira e um dos 40 homens autorizados, por direito e tradição, a usar o fardão da Academia. Diante a tragédia, estava, então, aberta a vaga para a imortalidade.
Ciente da exclusividade e do significado que a Academia Brasileira de Letras portava naquele contexto, o coronel Agnaldo Sampaio Pereira, avisado pelo desembargador Lissandro Leite, toma conhecimento a respeito de uma oportunidade única e formidável: a chance de ser o quadragésimo integrante da ABL.
“Tome-se o exemplo do coronel Agnaldo Sampaio Pereira: tendo o poder das armas e da polícia, mandando e desmandando, senhor de cutelo e baraço diante de quem até os ministros tremem, não se sente plenamente realizado, falta-lhe a Academia. Ambição antiga, dos tempos dos primeiros (e renegados) versos, ilusão a acompanhá-lo vida afora.”
Farda, Fardão, Camisola de Dormir (pág. 31)
Cabe salientar que o ocorrido situa-se no ano de 1940, período do Estado Novo. Jorge Amado transporta os leitores, de maneira admirável, a reconstrução dos eventos históricos e a crítica por trás do ocorrido: a Academia, que representava, segundo o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), um lugar de subversivos, abria a oportunidade para um militar ser um de seus membros.
Sendo um dos vorazes nomes do Estado Novo, o coronel Sampaio Pereira era adepto declarado do nazismo e declarava sua constante ‘guerra sem trégua contra os inimigos da pátria’.
“Homem de ação, igualmente homem de pensamento com vasta obra de teórico a conquistar-lhe títulos e louvores no campo das letras: ‘um dos mais copiosos e atuantes escritores de sua geração, fecundo pensador político, ensaísta de voo pinacular’ e por aí afora. Seus livros faziam a apologia e a propaganda dos regimes fortes, analisavam a decadência e a podridão das democracias, denunciavam o monstruoso perigo comunista.”
Farda, Fardão, Camisola de Dormir (pág. 21)
Orientado pelo desembargador Lissandro Leite, já membro da ABL, o coronel Agnaldo Sampaio acreditava que, sendo candidato único, sua vitória seria unânime e esplendorosa. Entretanto, o desembargador não esclareceu ao militar os ânimos da Academia quanto a sua candidatura.
Considerando um ultraje à memória de Bruno, os demais imortais repudiavam a possibilidade de eleição de Sampaio Pereira. Entretanto, em tempos de Estado Novo, quem teria coragem de ser oposição declarada?
Jorge Amado, neste ponto, nos apresenta a dupla formidável Afrânio Portela e Evandro Nunes dos Santos, os líderes da brigada. Recusando-se a entregar a eleição ao coronel, mestre Evandro e mestre Afrânio começam a tecer o lado da oposição. De forma sútil, estratégica e bem pensada, ambos desenham uma nova possibilidade para a votação.
O candidato alternativo não poderia ser um civil (quem, em sã consciência, ousaria enfrentar um militar da ativa?). A opção restante era lógica: somente recorrendo a hierarquia militar para conseguir derrubar o coronel.
Lembrado por Rodrigo Inácio Filho, o General Waldomiro Moreira tinha o perfil necessário: era declaradamente antinazista, pró-aliados da Segunda Guerra, sem compromissos com o Estado Novo e disposto a enfrentar Sampaio Pereira.
Um jogo desenha-se em torno da votação: o coronel Agnaldo Sampaio Pereira, apoiado pelo fiel desembargador Lissandro Leite, que o prometeu a eleição, contra seu oponente, general Moreira, indicado pelos mestres Evandro e Afrânio.
A seriedade e a tensão deste momento desencadearam uma verdadeira batalha entre os imortais e aqueles que desejavam poder usar tal título junto ao fardão. Os candidatos tinham a missão de convencer os 39 acadêmicos vivos de que eram merecedores de seus votos.
Tamanho brilhantismo na descrição e perspicácia da construção dos cenários e personagens, Jorge Amado ergue o desejo pela imortalidade a um nível estratégico presente no limiar da presença humana e do complexo de Deus.
Deliciosas passagens que levam o leitor envolto no deleite da perspicácia do autor. Dotado de humor crítico, a votação torna-se um verdadeiro jogo político desenhado e composto por personagens do enredo principal e secundário. Cada um é capaz de redefinir os rumos da eleição em favor de seu candidato.
Lembrem-se: nas palavras de Lissandro, o voto de Pérsio Menezes vale por cinco.
Apesar de não estarem no cerne da votação, que era restrita aos membros da ABL, as personagens femininas desempenham um papel primordial no enredo. Um destaque ao brilho de Maria João, atriz e um dos ex-amores do poeta Bruno, ovacionada dentro e fora dos palcos e responsável por ajudar os mestres Afrânio e Evandro a conseguir preciosos votos. A querida Pru, filha mais nova do desembargador Lissandro, encarna as vontades da juventude militante de outrora. Contrariando seu nome de batismo, Prudência não estava entre suas qualidades.
As personagens apresentadas na obra moldam os entraves de todas as cenas. Dotadas de personalidades bem construídas e ressaltadas, tais personagens mostram seu entendimento e seu engajamento político. Jorge Amado, assim, ressalta o protagonismo feminino.
A disputa pela cadeira de Bruno tem um final inesperado, o que comprova, novamente, a sagacidade de Jorge Amado em tecer enredos intrigantes e envolventes até as últimas páginas de sua obra.
***
Republicado a partir de 2009 pela Editora Companhia das Letras, a nova edição de “Farda, Fardão, Camisola de Dormir” conta com uma nova capa e um posfácio escrito por Alberto da Costa e Silva.
O livro é capaz de reacender o interesse pela rica e deslumbrante Literatura Brasileira, contando com passagens que transbordam ironia, sarcasmo e diversão, sem perder jamais o tom crítico e analítico. O autor escreve com tamanha maestria que encanta os leitores a cada palavra e, simultaneamente, consegue valorizar a pluralidade da língua portuguesa.
Mestre em descrever cenários e construir personagens, Jorge Amado é um dos maiores nomes literários que temos na História.
***
Fotografia: Julia Santos Neves
Postagem original feita no Instagram
Para estrear a coluna de Literatura do blog, queria trazer uma obra brasileira. Sendo assim, nada melhor do que Jorge Amado para esse início. “Farda, Fardão, Camisola de Dormir” é um dos mais belos livros que já li.
animadamente,
Julia.