UM ESPAÇO PARA O LIVRE PENSAR

Mês: abril 2023

Alguns e outros de nós

Somos os que emergem e afundam na mesma intensidade. Os escolhidos simultaneamente pela glória e pelo fracasso. Os que conhecem as montanhas e os penhascos e os que vivem tudo isso às vezes sem nem mesmo existir. 

Alguns de nós são devotos do próprio ser, onipotentes da própria alma e oniscientes da própria mente. Outros são o vazio da vida ou ausência do caminho. 

Com tantas controvérsias e paradigmas, de alguma forma, somos os libertadores e os aprisionados e somos a criação que sonha ser o criador.

A maioria das vezes que tentamos criar, fracassamos como criaturas. De nada a nossa criação foi como o desejado, porque no fundo não sabemos mais o que desejar.

Talvez porque nesse processo muito se quis e pouco se deu. Porque o criador e a criação jamais se entenderam, jamais cooperaram em uníssono e jamais chegaram onde desejaram. 

O criador nunca criou de verdade. 

A criação nunca foi feita por completo. 

Porque o esforço foi infrutífero e não se soube o que era reconhecimento. A criação que criamos de nada importa se é só a vazio que dela restará. 

E o processo foi cansativo mas só alguns e outros como nós entenderam.

Talvez porque somos os esquecidos que esqueceram-se de esquecer. Os perdidos abandonados pelo tempo e pelo espaço. Os espíritos que não partiram ou desapareceram, apenas foram ficando.

Somos os que aprenderam a sentir, mas nem sempre a dizer. Aqueles que queriam existir e não esquecer. 

Somos a alma angustiada, fraudada por cores e vidas. Somos a dor que nunca some, a alegria que não nasce e a tristeza que não se perde. 

Somos o Ninguém e o Nada é o lugar que chegamos, ou melhor, o único que criamos.

Os esquecidos que foram abandonados mesmo antes de existir; os amantes que jamais conheceram o amor; os poetas que abandonaram a poieses

Somos os que foram abandonados, deixados e largados às margens das maravilhas que um dia nos prometeram. 

Somos a esperança dos tempos de glória e a desgraça dos tempos da derrota. 

Somos aqueles que sonham mas, que na maioria das vezes, alucinam. 

Somos os que tentam e persistem; somos o que podemos e fazemos o possível. 

E às vezes somos o desespero de se ver em todo lugar e não pertencer a nenhum.

Somos o delírio da alegria de viver e o abismo do desassossego de existir. Seremos o Passado, o Presente e o Futuro; mas mesmo assim seremos os ausentes.

E nada de redundante temos nisso tudo; só queremos a opção de, pela primeira vez, não precisar mais ser. 

***

Arte de Aarti Shinde

O texto só para aqueles que sabem quem são.

Espirituosamente, 
Julia.

Quando o relógio trava

Dificilmente o Tempo foi aquele que forneceu o alento de que tanto precisávamos. O senhor da verdade, na maioria das vezes, foi o catalisador de boa parte do tormento. Se não era suficiente ser assombrado pela sua existência, convivemos com a materialização da sua presença através do bendito do relógio.

Contando, regrando e regendo os segundos; vemos a precisão que não temos. A frequência ininterrupta que não tolera erros. Porque os erros geram atrasos e os atrasados não terão seu lugar garantido – aqui e no agora ou na história que o Tempo resolverá contar.

A Mente tem dificuldade de acompanhar o Tempo e o Tempo mostra desprezo pela Mente. Escolheu deixá-la em agonia do que ter a descendência de ensinar-lhe sobre a paciência. Preferiu exibir o incômodo silêncio de acompanhar os ponteiros. Enquanto estes têm função, seguimos à deriva. Enquanto têm propósito, seguimos ao acaso. 

Entretanto, o acaso nada tem de aleatório. É justamente o outro lado que reage pela falta de condescendência. E, neste instante, a mente resolve desafiar o perfeccionismo crônico do Tempo; é o instante em que a ordem natural quer colapsar o status quo.

A ideia não surge eventualmente, é quase programada. Há um momento específico que gera toda esta catarse: é quando o relógio trava.

O ponteiro não avança. Trava, estaca no mesmo lugar. Mesmo insistindo, o ponteiro apenas vai e volta para mesma posição, retorna ao mesmo segundo, congelando o tempo em uma única fração. E é aqui em que surge a Esperança. 

Esperança de que há tempo para mudar – retirar o que foi dito, desfazer o que foi pensando, escolher outra versão para ser hoje. 

Enquanto o ponteiro não se mexe, ainda há especulações. Do que pode ser feito; onde pode-se chegar. De quantas músicas podem ser escutadas, quantas páginas podem ser lidas ou quantas histórias podem ser contadas, quanto planos podem ser feitos no meio disso tudo. 

O alívio momentâneo é a sensação de que não há mais uma corrida. É a fração de segundos em que a linha de chegada desaparece; já que não há lugar para se chegar. O Tempo está congelado para que possamos aproveitar e aproveitamos porque vemos o Tempo deixar de ser tempo

E, infelizmente, é aqui que nos esquecemos. Esquecemos que a falha mecânica foi apenas momentânea e afetou exclusivamente um dos milhares de relógios que nos cercam. Quando percebemos que não há muito para se ver além disso, ficamos desolados e estagnados, pensando em como nossa Mente foi tola ao pensar que haveria um momento de rebelião. Queríamos acreditar que havia um sinal que indicasse uma conspiração maior para desafiar o Regimento do Tempo.

Entretanto, não há tolice; há reflexão. Mesmo com pouco a ser visto, há muito a ser olhado. 

A vontade do desafio é o sinal do desejo de não ser mais guiado, conduzido, condicionado e pressionado por aquele que se diz o Senhor da Verdade. É a dica para não esperar pelo momento em que o relógio trave enquanto podemos travá-lo por conta própria. 

É o instante em que o relógio passa a ser mais um daqueles que deixaremos para trás, do mesmo jeito como o próprio Tempo nos deixará. É acelerar um processo, só que em seu sentido, caminho e direção próprios. É viver pela vida e não pela existência. É cronometrar os momentos e não de horas. 

***

Arte de capa de Salvador Dalí, ‘A persistência da memória‘ (1931)

Que mesmo com os ponteiros funcionando em plena ordem, o status quo seja abalado.

Pontualmente,
Julia.

Tudo que é sólido se volatiliza

Adoraria dizer que o pouco alento e a pouca estabilidade que encontramos na vida está nas coisas concretas e sólidas que nos cercam. Buscamos por eles pois nos atormenta entender que não há possibilidades para tais coisas. 

E nos atormenta mais ainda começar a perceber que são poucos os momentos que as encontramos. 

Buscamos o conforto que a estabilidade traz a qualquer custo e a qualquer esforço. Entretanto, a angústia jamais some. Por mais concreto que imaginamos certas pessoas, ocasiões ou planejamentos há uma parte do ser – que muitos diriam ser maldita – que não se conforma. 

O sexto sentido, a percepção aguçada, ou como queira chamar, já nos avisa de antemão: algo dará errado. Uma vez que nada é ao acaso, sabemos – sem jamais admitir – que no fundo tudo que é sólido se volatiliza. 

Estamos todos aflitos e sabe os por quês disso tudo? 

Porque a mesma vontade de viver pode transformar-se na vontade de desaparecer em instantes. 

Porque a angústia, a mágoa, a dor podem deixar sua essência de tormento; enquanto a alegria e a felicidade viram um falso alento.

Porque a admiração pode transformar-se em desprezo e a indiferença em apreciação. 

Porque a vida se edifica da mesma forma como se destrói, já que o concreto é uma ilusão tão desleal quanto um castelo de areia. 

Ouso ir mais longe: a única coisa sólida em que podemos nos equilibrar são os nossos próprios sonhos, construídos e moldados por nossas vontades e ambições. É o imaginário que propicia a essência de vida que nos ergue a cada dia. É o lúdico que permeia cada entranha do ser que nos permite sonhar e pelo sonhar nos permite existir. 

É a vida que se solidifica, erguida em um mar de volatilidades. É o ser que se molda de sonhos porque acredita merecer ser alguém. É o Universo que se encanta pela possibilidade de existir e de destroçar na mesma intensidade. 

É o Caos que encontra a Calmaria na própria existência. É a Serenidade que irrita-se pela falta do Agito. 

É o Equilíbrio do Desequilíbrio que nos ajuda a encontrar as vidas que sonhamos, que tivemos e que um dia teremos. O caminho turvo que nos permite apreciar a diversão entre cada uma de suas curvas. 

Se a Incerteza é a prova concreta de que certezas existem; o Sólido indica e nos prepara para as avalanches de todas as volatilidades que nos cercam. 

Se o certo é duvidoso e o incerto é possibilidade concreta, a Existência desenha-se em seu esplendor em Castelos de Volatilidade e Nuvens de Concretude. 

Deixe o Ser deixar de existir e o Nada transformar-se em tudo. Deixe o processo inverso acontecer também. Apesar da humilde sugestão, não esqueça que não temos autonomia completa em nenhum dos casos. 

Espero que a Volatilidade construa o que queira e o Sólido desmanche-se a sua própria medida. Espero que ambos se destruam e se ergam. Espero que encontrem o significado de Equilíbrio nesse Desequilíbrio que chamamos de vida. 

E espero que estejamos todos nós em cada uma dessas partes que jamais evitaremos.

***

Arte de capa de Piet Mondrian

Que o texto de hoje seja um alento – ou tormento – a quem o leia.

Ponderadamente, 
Julia.

Aqueles que não voltarão

Estamos em uma dívida constante com os Senhores do Tempo. Cobramos do Passado os dias que uma vez chamamos de hoje e a vida que chamávamos de nossa. Devemos ao Presente a vontade de viver que reservamos as expectativas do Futuro. Esperamos do Futuro a concretização de tudo o que sonhamos no Passado e no Presente. 

A dívida é formada pela incapacidade de mensurar. Mensurar quanto do Passado deixamos que nos afete; o quanto do Presente permitimos que se possa agir; quanto do Futuro podemos criar expectativas. 

Não entendemos os Senhores porque deles não sabemos nada sobre e, na maioria das ocasiões, ignoramos o que pouco entendemos. Entretanto, há um resquício da sua presença que nos acompanha. A memória viva da sua presença está em quem nos cerca: nos que caminham conosco há um tempo, nos que surgiram agora e naqueles que um dia aparecerão. 

O difícil está em reconhecer quem são e em que temporalidade da vida ficarão. Certas pessoas gostaríamos que ainda estivessem no agora. Outras foram embora e preferiram ficar no Passado ou foram deixadas lá permanentemente. Algumas desejamos reencontrar em um dia próximo. O resquício do Tempo que nos acompanha é tão fluído quanto o próprio. 

A conformidade não é tão presente como deveria. Mal dizemos a passagem do tempo e mal compreendemos quem estava, está ou estará durante todo o processo. Se o Tempo é o Senhor da Verdade, por que não teve a decência de ensinar a todos nós esta parte? 

Por vezes só desejamos relembrar o que fomos. Talvez, aqueles que sejam dotados de boa memória possam reviver o que já chamaram de vida – em todo seu esplendor e ênfase – outra vez. Quem sabe, alguns privilegiados tenham a possibilidade de, por um nanosegundo, guiar a mente, alma e coração ao Passado e revivê-lo como se fosse o Presente. 

Ótimo feito aos que conseguem. Contudo, espero que saibam fazer a viagem de volta. 

Ao Passado das memórias, ao Presente das angústias e ao Futuro das esperanças: todos, uma hora ou outra, representam a vida e suas escolhas. Querer fragmentá-los e dissociá-los não é coerente; muito menos, esperar que se aglutinem. 

Não há alento em ficar preso às memórias. A alegria da volta será momentânea, assim como a própria vida. Quanto mais apegado ao que já se perdeu, menos lúcido do agora estará. 

Deixamos parte da vida para trás. Dissemos Adeus pela última vez. 

Sabendo disso, temos consciência daqueles que não voltarão. Daqui a uns anos serão apenas uma memória turva, uma sombra presente, em um vestígio do passado. Sua presença não é ignorada, muito pelo contrário. Apenas preferimos deixá-las como memória; deixá-las como lembrança, mesmo que efêmera, daqueles que não voltarão. 

São aqueles que não permitimos trazer ao Presente. Deixamos sob o único encargo do Passado. Alguns deles se perderão pelo caminho e outros deixamos por conta própria lá.

Não me assusta concluir que, um dia, também serei uma dessas pessoas. Ficarei para trás reservada a uma pequena memória ou ao total esquecimento. E de nada me assusta.

Talvez o limbo das ideias e das lembranças seja apenas um lugar para existir – ou deixar de existir. É um vazio repleto de tudo e nada – tudo que já foi; nada que sobrou. O ambiente das próprias personas que foram enterrados, de quem esteve neste tempo e não caminhou conosco depois. 

Por isso, deixe-me no Passado sem qualquer pesar ou ressentimento. É um lugar a que pertenço; senão agora, em um Futuro – próximo ou não. 
Já que deixei tantos outros lá, por que não seria capaz de ficar eu mesma? Em algum ponto, cada um de nós compõe aqueles que não voltarão na vida de alguém.

***

Arte da capa de Lesley Oldaker

Sem ressentimento dos Senhores do Tempo desta vez. Obrigada pela leitura. Até breve!

Atenciosamente, 
Julia.

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