Dificilmente o Tempo foi aquele que forneceu o alento de que tanto precisávamos. O senhor da verdade, na maioria das vezes, foi o catalisador de boa parte do tormento. Se não era suficiente ser assombrado pela sua existência, convivemos com a materialização da sua presença através do bendito do relógio.
Contando, regrando e regendo os segundos; vemos a precisão que não temos. A frequência ininterrupta que não tolera erros. Porque os erros geram atrasos e os atrasados não terão seu lugar garantido – aqui e no agora ou na história que o Tempo resolverá contar.
A Mente tem dificuldade de acompanhar o Tempo e o Tempo mostra desprezo pela Mente. Escolheu deixá-la em agonia do que ter a descendência de ensinar-lhe sobre a paciência. Preferiu exibir o incômodo silêncio de acompanhar os ponteiros. Enquanto estes têm função, seguimos à deriva. Enquanto têm propósito, seguimos ao acaso.
Entretanto, o acaso nada tem de aleatório. É justamente o outro lado que reage pela falta de condescendência. E, neste instante, a mente resolve desafiar o perfeccionismo crônico do Tempo; é o instante em que a ordem natural quer colapsar o status quo.
A ideia não surge eventualmente, é quase programada. Há um momento específico que gera toda esta catarse: é quando o relógio trava.
O ponteiro não avança. Trava, estaca no mesmo lugar. Mesmo insistindo, o ponteiro apenas vai e volta para mesma posição, retorna ao mesmo segundo, congelando o tempo em uma única fração. E é aqui em que surge a Esperança.
Esperança de que há tempo para mudar – retirar o que foi dito, desfazer o que foi pensando, escolher outra versão para ser hoje.
Enquanto o ponteiro não se mexe, ainda há especulações. Do que pode ser feito; onde pode-se chegar. De quantas músicas podem ser escutadas, quantas páginas podem ser lidas ou quantas histórias podem ser contadas, quanto planos podem ser feitos no meio disso tudo.
O alívio momentâneo é a sensação de que não há mais uma corrida. É a fração de segundos em que a linha de chegada desaparece; já que não há lugar para se chegar. O Tempo está congelado para que possamos aproveitar e aproveitamos porque vemos o Tempo deixar de ser tempo.
E, infelizmente, é aqui que nos esquecemos. Esquecemos que a falha mecânica foi apenas momentânea e afetou exclusivamente um dos milhares de relógios que nos cercam. Quando percebemos que não há muito para se ver além disso, ficamos desolados e estagnados, pensando em como nossa Mente foi tola ao pensar que haveria um momento de rebelião. Queríamos acreditar que havia um sinal que indicasse uma conspiração maior para desafiar o Regimento do Tempo.
Entretanto, não há tolice; há reflexão. Mesmo com pouco a ser visto, há muito a ser olhado.
A vontade do desafio é o sinal do desejo de não ser mais guiado, conduzido, condicionado e pressionado por aquele que se diz o Senhor da Verdade. É a dica para não esperar pelo momento em que o relógio trave enquanto podemos travá-lo por conta própria.
É o instante em que o relógio passa a ser mais um daqueles que deixaremos para trás, do mesmo jeito como o próprio Tempo nos deixará. É acelerar um processo, só que em seu sentido, caminho e direção próprios. É viver pela vida e não pela existência. É cronometrar os momentos e não de horas.
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Arte de capa de Salvador Dalí, ‘A persistência da memória‘ (1931)
Que mesmo com os ponteiros funcionando em plena ordem, o status quo seja abalado.
Pontualmente,
Julia.
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